“As Coisas que Perdemos no Fogo” é uma coletânea de doze contos que mergulham no lado obscuro da Argentina, revelando uma realidade permeada pela violência, desigualdade social, e os fantasmas de um passado ditatorial. O estilo de Enriquez é cru e direto, mas carregado de uma tensão psicológica que transforma cenários e personagens aparentemente comuns em epicentros de horror. O terror aqui não surge apenas de espectros ou monstros convencionais, mas da própria realidade: da miséria, da violência contra a mulher, das superstições e das memórias reprimidas que assombram os vivos. A obra deixa no leitor uma sensação inquietante e familiar, questionando os limites entre a sanidade e a loucura, o real e o fantástico.
📑 Resumo por Conto
A coletânea é composta por doze narrativas independentes, mas conectadas por uma atmosfera de desolação e estranheza:
- O Menino Sujo: Uma mulher se muda para a antiga casa de seus avós no bairro de Constitución, uma área degradada de Buenos Aires. Lá, ela observa a vida de um menino de rua e sua mãe, que vivem em condições miseráveis em frente à sua casa. O conto explora a impotência, a culpa social e o medo urbano quando, subitamente, a mãe e o filho desaparecem, deixando um rastro de mistério e a indiferença da cidade.
- A Hospedaria: Duas adolescentes, buscando vingança pela demissão do pai de uma delas, invadem uma hospedaria durante a noite com a intenção de vandalizar o local. O prédio, que já foi um centro de repressão durante a ditadura, revela-se um lugar assombrado, onde as jovens têm uma visão aterrorizante que as conecta com os horrores do passado.
- Os Anos Intoxicados: A narrativa acompanha um grupo de amigas durante a transição da adolescência para a vida adulta, em meio à crise econômica e à instabilidade política da Argentina dos anos 90. O conto aborda a automutilação, o uso de drogas e uma sensação de apatia e desencanto de uma geração que cresceu sob a sombra da liberdade recém-conquistada, mas sem perspectivas de futuro.
- A Casa de Adela: Dois irmãos se tornam amigos de Adela, uma garota que não tem um dos braços e que os fascina e assusta. Juntos, eles decidem explorar uma casa abandonada no bairro. O que acontece lá dentro é um evento traumático e inexplicável que marca a vida dos irmãos para sempre, abordando temas como os desaparecimentos na ditadura argentina e as monstruosidades ocultas na normalidade.
- Pablito Clavó un Clavito: uma evocação do Baixinho Orelhudo: Um guia turístico de cemitérios fica obcecado pela história de Cayetano Santos Godino, um assassino de crianças do início do século XX conhecido como “Baixinho Orelhudo”. O conto explora a fascinação pelo macabro e a violência histórica, misturando a lenda urbana do assassino com os perigos contemporâneos da cidade.
- Teia de Aranha: Uma mulher viaja de carro com o marido e o primo dele pelo norte da Argentina. A tensão no relacionamento é palpável, e a paisagem sufocante e cheia de superstições espelha a teia de segredos e ressentimentos do trio. O conto trabalha uma atmosfera de ameaça constante e claustrofobia emocional, culminando em um final abrupto e perturbador.
- Fim de Curso: Em uma escola, uma aluna começa a se automutilar de formas extremas, primeiro arrancando as unhas e depois o cabelo, sem que ninguém consiga intervir. A narradora, sua colega de classe, observa o fascínio e o horror que a garota provoca, discutindo o corpo como um território de dor e protesto.
- Nada de Carne sobre Nós: Uma mulher encontra um crânio humano em um parque e o leva para casa, desenvolvendo uma estranha e íntima relação com ele. Aos poucos, ela se afasta de seu namorado e do mundo exterior, mergulhando em uma obsessão que a leva a uma transformação física radical, em um conto que beira a necrofilia e a desintegração da identidade.
- O Quintal do Vizinho: Paula, uma assistente social em recuperação de uma depressão severa, se convence de que seu vizinho mantém uma criança acorrentada no quintal. O conto cria uma atmosfera de suspense psicológico, brincando com a dúvida da narradora e do leitor: trata-se de um crime real ou de um delírio paranoico?
- Sob a Água Negra: Uma promotora investiga o assassinato de dois jovens em uma favela poluída e negligenciada pelas autoridades. Ao visitar o local, ela se depara com uma comunidade afundada em miséria, violência policial e crenças pagãs. O conto mistura crítica social com elementos de horror lovecraftiano, sugerindo que a poluição do rio despertou algo antigo e malévolo.
- Verde Vermelho Alaranjado: Um homem desenvolve uma obsessão por uma mulher que ele vê aleatoriamente na rua. Ele a persegue online e fisicamente, construindo uma fantasia em sua mente. O conto aborda a perspectiva de um stalker, mergulhando na paranoia, no delírio e na masculinidade tóxica no ambiente urbano e digital.
- As Coisas que Perdemos no Fogo: Em resposta a uma onda de violência machista em que homens queimam suas parceiras, mulheres começam a se queimar voluntariamente em fogueiras. Essas “Mulheres Ardentes” transformam seus corpos marcados pela dor em um símbolo de poder e resistência, criando uma nova e assustadora ordem social. O conto que dá nome ao livro é uma alegoria potente sobre o feminicídio e a insurreição feminina.
🖋️ Principais Pontos
- O Terror como Crônica Social: O grande diferencial de Enriquez é sua habilidade de usar o gênero do terror para comentar sobre problemas reais e tangíveis da sociedade argentina. A ditadura, a crise econômica, a violência policial e o feminicídio não são apenas um pano de fundo, mas a própria fonte do horror.
- O Espaço Urbano Decadente: Buenos Aires e suas periferias são personagens essenciais na obra. Enriquez retrata bairros que, como Constitución, já foram aristocráticos e hoje são ruínas marcadas pelo abandono e pela pobreza, transformando a cidade em um labirinto de perigos reais e sobrenaturais.
- Corpos Femininos como Território de Disputa: Muitos contos exploram o corpo feminino como um palco para a violência, a automutilação e a resistência. Seja através da anorexia em “Nada de carne sobre nós” ou das queimaduras em “As coisas que perdemos no fogo”, o corpo se torna uma ferramenta de protesto contra uma sociedade opressora.
💡 Aprendizados
- O Passado Sempre Retorna: A obra ensina que traumas históricos e pessoais não desaparecem simplesmente. Eles permanecem como fantasmas, assombrando lugares e gerações, e a única forma de lidar com eles é encará-los, por mais monstruosos que sejam.
- A Fragilidade das Aparências: Enriquez nos mostra que o horror muitas vezes se esconde sob uma fachada de normalidade. Um vizinho pode ser um sequestrador, uma casa abandonada pode ser um portal para o inexplicável, e a indiferença cotidiana pode ser a maior das violências.
- A Violência como Linguagem Universal: O livro demonstra como a violência (seja ela física, psicológica ou estrutural) molda as relações humanas e o ambiente. Em um mundo que parece ter perdido a razão, atos extremos, por vezes, se tornam a única forma de comunicação ou de rebelião.
👀 Curiosidades
- Mariana Enriquez é também jornalista e trabalha como subeditora do suplemento de arte e cultura Radar, do jornal Página/12. Sua vivência como repórter influencia fortemente a crueza e o realismo de suas histórias.
- Ela se declara uma grande fã de rock e de autores de terror como Stephen King e Shirley Jackson. Essas influências são visíveis na construção de suas atmosferas e na forma como o horror invade o cotidiano.
- O livro foi um sucesso internacional, traduzido para mais de 20 idiomas, e consolidou Enriquez como uma das principais vozes do novo gótico latino-americano.
- A edição brasileira da Intrínseca conta com a tradução de José Geraldo Couto.
🔄 Conhecimentos Conectados
- “Os Perigos de Fumar na Cama” – Mariana Enriquez: Outra aclamada coletânea de contos da autora, que explora temas similares de horror, obsessão e o macabro infiltrado no dia a dia. É uma excelente porta de entrada para quem deseja aprofundar-se em seu universo.
- “Distância de Resgate” – Samanta Schweblin: A obra desta conterrânea de Enriquez também trabalha com uma atmosfera de suspense e estranhamento no cotidiano. Schweblin e Enriquez são frequentemente citadas como as duas maiores expoentes do terror rural e urbano na Argentina contemporânea.
- “Nossa Parte de Noite” – Mariana Enriquez: Para quem deseja uma imersão mais longa e complexa no mundo de Enriquez, seu romance premiado é a escolha perfeita. A obra expande muitos dos temas presentes nos contos — como sociedades secretas, rituais macabros e a herança sombria da ditadura — em uma narrativa épica e aterradora.