“Eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato: Um Retrato Caótico e Humano de São Paulo

“Eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato: Um Retrato Caótico e Humano de São Paulo

“Eles eram muitos cavalos” não é um romance tradicional com uma trama linear. Em vez disso, Luiz Ruffato nos presenteia com um mosaico literário, um caleidoscópio de vidas que se cruzam, ou não, ao longo de um único dia em São Paulo: a terça-feira de 9 de maio de 2000. A obra é composta por fragmentos, vinhetas e flashes que, juntos, pintam um retrato visceral e multifacetado da cidade. Com um estilo experimental que mescla fluxos de consciência, recortes jornalísticos e diferentes vozes narrativas, o livro captura a solidão na multidão, a brutal desigualdade social e os fugazes momentos de esperança e desespero que definem a experiência urbana. É uma leitura que nos absorve, nos perturba e nos força a enxergar a cidade e seus habitantes sob uma nova luz.

📑 Resumo por Capítulo/Conto

Cada capítulo é um fragmento único que contribui para o painel geral da cidade.

  • 1. Cabeçalho, 2. O tempo, 3. Hagiologia: O livro começa de forma impessoal, quase como um relatório, estabelecendo a data, a hora e o local: São Paulo, 9 de maio de 2000. Informa a previsão do tempo , a qualidade do ar e até a história da santa do dia, Santa Catarina de Bolonha. Essa abertura fria e factual serve de moldura para o turbilhão de histórias humanas que se seguirá.
  • 4. A caminho: Em um fluxo de consciência hipnótico, acompanhamos um homem enquanto ele dirige em alta velocidade para o aeroporto de Cumbica. Ele reflete sobre seu sucesso material (roupas de grife, um bom apartamento) , seu trabalho cuidando do “caixa-dois” de uma corretora e o desprezo que sente pelos filhos de seu patrão. A repetição da frase “mais neguim pra se foder” e o ritmo “tum-tum tum-tum” criam uma atmosfera de urgência e crítica social.
  • 5. De cor: Em forte contraste, este conto retrata uma cena de ternura e orgulho. Um pai, um operador de empilhadeira, caminha pela beira de uma rodovia com seu filho e um conhecido. O menino, de dez ou onze anos, tem um talento extraordinário: sabe de cor a qual estado pertence cada cidade do Brasil, identificando-as nos letreiros dos ônibus que passam em alta velocidade. O orgulho do pai é palpável, um lampejo de dignidade em meio a uma rotina de sacrifícios.
  • 6. Mãe: Vivenciamos a jornada excruciante de uma senhora idosa em um ônibus de Garanhuns para São Paulo. Durante 48 horas, ela suporta o desconforto físico, o medo da velocidade e a ansiedade para reencontrar o filho no Dia das Mães, a quem não vê há anos. A narrativa é uma torrente de sensações, memórias e observações fragmentadas da paisagem que passa, refletindo seu estado mental e físico.
  • 7. 66: Um interlúdio curto e enigmático, escrito como uma previsão de numerologia ou horóscopo. Fala sobre a busca por sucesso material, prestígio e a necessidade de ser prático e objetivo, ecoando e ao mesmo tempo ironizando as aspirações de alguns personagens e o destino de outros.
  • 8. Era um garoto: Construído como uma única e longa sentença, este capítulo é o lamento de uma mãe no velório de seu filho de dezessete anos. Em um fluxo de dor e memória, ela relembra a vida do filho, seus sacrifícios como mãe solo, a relação distante com o pai ausente e a perplexidade final diante da tragédia, questionando “meu deus por quê que ele foi fazer isso meu deus por quê”.
  • 9. Ratos: Um dos contos mais brutais e desoladores. Em um barraco no Jardim Irene , um bebê é atacado por ratos enquanto sua família vive em condições de miséria extrema. A mãe, de apenas trinta e cinco anos mas devastada pela vida , está ausente ou incapacitada, e os filhos pequenos são deixados à própria sorte em um ambiente de sujeira e abandono.
  • 10. O que quer uma mulher: Acompanhamos uma conversa tensa entre um casal na madrugada. A mulher, exausta da vida de dificuldades financeiras, confronta o marido, um intelectual que lê Foucault e que ela acusa de ser um “inconformista conformado” , que usa a “opção pela pobreza” como desculpa para sua falta de ambição. Ela desabafa seu medo e sua insatisfação, revelando a profunda fratura em seu relacionamento.
  • 11. Chacina nº 41: A violência urbana é narrada pela perspectiva inusitada de um cão vira-lata. Após ser chutado brutalmente, o cão relembra o que viu momentos antes: três corpos deitados no chão, vítimas de uma chacina, perto de um salão de forró. O título do capítulo sugere que essa violência é rotineira e numerada, um fato banal na vida da cidade.

🖋️ Principais Pontos

  1. A Estrutura de Mosaico: A genialidade da obra reside em sua estrutura fragmentada. Ruffato abandona a narrativa convencional para construir um painel da cidade a partir de dezenas de pequenas histórias. Essa técnica de colagem reflete a natureza caótica e multifacetada de São Paulo, onde inúmeras vidas correm em paralelo.
  2. A Cidade como Personagem Central: Mais do que um cenário, São Paulo é a grande protagonista do livro. Suas ruas, seus ônibus , seu trânsito , sua violência e suas abissais divisões sociais são o tecido que conecta todas as narrativas, do apartamento de luxo em Moema ao barraco infestado de ratos.
  3. Linguagem e Fluxo de Consciência: O autor demonstra um domínio estilístico impressionante, adaptando a linguagem a cada personagem e situação. Ele utiliza o fluxo de consciência de forma magistral, como no monólogo febril de “A caminho” ou na avalanche de memórias e sensações de “Mãe”, criando uma experiência de leitura imersiva e sensorial.

💡 Aprendizados

  1. A Empatia pela Vida Anônima: O livro é um poderoso exercício de empatia. Ele nos obriga a reconhecer a humanidade em cada anônimo na multidão — o motorista, a mãe no ônibus, a família em situação de miséria, o casal em crise. Aprendemos que por trás de cada janela e de cada rosto há um universo de dores, sonhos e lutas.
  2. A Crítica Social na Forma: A própria estrutura fragmentada e por vezes desconexa da obra é uma crítica à desintegração social. A ausência de um elo narrativo forte entre os contos espelha a solidão e a indiferença que marcam a vida na metrópole moderna, onde as pessoas coexistem sem verdadeiramente se conectar.
  3. A Complexidade das Relações Humanas: “Eles eram muitos cavalos” explora as relações em seus mais variados espectros: o amor incondicional de uma mãe , o orgulho de um pai , o desgaste de um casamento e a completa ausência de laços em meio à brutalidade e ao abandono.

👀 Curiosidades

  • A edição utilizada como fonte é a 11ª, descrita como “revista, definitiva”, publicada em 2013 pela Companhia das Letras, o que demonstra o sucesso e a importância duradoura da obra.
  • A obra tem uma nota de esclarecimento que informa que “os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção”.
  • O livro foi atualizado para seguir as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
  • A capa da edição foi criada pelo renomado Máquina Estúdio, dos designers Kiko Farkas e Roman Atamanczuk.

🔄 Conhecimentos Conectados

Para quem se encantou com a prosa potente e a estrutura inovadora de “Eles eram muitos cavalos”, sugiro explorar obras que dialoguem com seu estilo e temática:

  1. Obras de estilo experimental urbano: A técnica de capturar a essência de uma cidade em um único dia através de múltiplas perspectivas lembra clássicos modernistas como Ulysses, de James Joyce (que se passa em Dublin), ou Manhattan Transfer, de John Dos Passos (que retrata Nova York). Ruffato utiliza uma abordagem semelhante para mergulhar na alma de São Paulo.
  2. Ficção brasileira de crítica social: A exposição crua das mazelas sociais e da vida nas periferias urbanas insere a obra de Ruffato em uma importante tradição da literatura brasileira. Ele dialoga com autores que se dedicaram a dar voz aos marginalizados, mas renovando essa tradição com uma forma literária arrojada e contemporânea.
  3. Outras obras do autor: Embora a fonte fornecida não cite outras obras de Luiz Ruffato, seu projeto literário, “Inferno Provisório”, do qual “Eles eram muitos cavalos” é o primeiro volume, aprofunda essa investigação sobre o mundo do trabalho e as transformações sociais no Brasil, sendo uma continuação natural para quem deseja seguir explorando seu universo.

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