“Nove Noites”, de Bernardo Carvalho, é um romance denso e multifacetado que se equilibra na fronteira entre ficção, biografia e reportagem investigativa. A trama central é a misteriosa morte do antropólogo americano Buell Quain, que se suicidou no interior do Brasil em 1939. Contado a partir de duas perspectivas distintas e separadas por mais de 60 anos, o livro não busca entregar respostas fáceis, mas sim mergulhar o leitor na própria natureza da busca pela verdade. É uma obra sobre a impossibilidade de decifrar completamente o outro e o passado, mostrando como as histórias são moldadas por fragmentos, silêncios e as incertezas da memória.
📑 Resumo por Capítulo
A análise a seguir detalha os capítulos iniciais, que estabelecem a estrutura narrativa e o mistério central da obra.
- Capítulo 1: A narrativa se inicia com a voz de um narrador anônimo, um sertanejo que se revela amigo do antropólogo Buell Quain. Ele escreve uma espécie de “testamento” para uma figura desconhecida que, ele acredita, um dia virá em busca de respostas sobre a morte de Quain. Este primeiro narrador adverte que a verdade naquelas terras é uma miragem, onde a cada dia a mesma pergunta pode gerar uma resposta diferente. Ele reconta os fatos conhecidos: Quain, um jovem de 27 anos, cometeu um suicídio brutal e aparentemente inexplicável em 2 de agosto de 1939. Ele confessa ter guardado consigo uma das cartas deixadas pelo antropólogo, destinada a essa pessoa desconhecida, por desconfiar de todos e para proteger os segredos do amigo. Este capítulo estabelece um tom de confidência e mistério, posicionando o leitor como o destinatário dessa herança de dúvidas.
- Capítulo 2: A perspectiva muda drasticamente para um segundo narrador, um jornalista ou escritor, em maio de 2001. Ele se depara com o nome de Buell Quain pela primeira vez em um artigo de jornal que menciona de passagem seu suicídio entre os índios Krahô. Intrigado, ele inicia uma investigação particular, contatando a antropóloga autora do artigo e mergulhando em arquivos no Brasil e nos Estados Unidos. Este narrador começa a montar o quebra-cabeça biográfico de Quain: seu nascimento em Bismarck, Dakota do Norte ; seus pais, ambos médicos ; seus estudos na Universidade de Columbia sob a orientação da célebre antropóloga Ruth Benedict ; e as circunstâncias conturbadas de sua pesquisa no Brasil, que envolveram frustrações e o divórcio recente de seus pais. Este capítulo transforma a narrativa em uma busca ativa, onde o leitor acompanha a exumação de fatos históricos que, ao invés de solucionar, apenas adensam o mistério.
🖋️ Principais Pontos
- Narrativa Dupla e Fragmentada: A genialidade da estrutura reside na alternância entre os dois narradores. De um lado, a memória afetiva e protetora do amigo que presenciou o fim ; do outro, a investigação fria e factual do jornalista décadas depois. Essa dualidade explora o abismo entre viver a história e tentar reconstruí-la.
- A Fronteira entre Ficção e Realidade: Bernardo Carvalho parte de uma pessoa e de um evento real — o suicídio do antropólogo Buell Quain — e utiliza documentos verídicos, como as cartas e os nomes de figuras históricas como Ruth Benedict e Heloísa Alberto Torres, para construir uma narrativa ficcional que explora o que os documentos não podem contar: as motivações e os segredos do coração humano.
- A Incerteza Como Tema Central: O livro é uma tese sobre a impossibilidade do conhecimento absoluto. O primeiro narrador avisa desde o início: “a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui”. Toda a busca do segundo narrador, apesar de revelar fatos, esbarra em peças faltantes, como cartas que não foram encontradas, e na névoa de interpretações possíveis para a tragédia.
💡 Aprendizados
- A Construção da História e da Memória: A obra nos ensina que a história não é um bloco sólido de fatos, mas um mosaico feito de memórias subjetivas, documentos parciais e segredos enterrados. Ela nos força a questionar como conhecemos o passado e a reconhecer o papel da interpretação na construção de qualquer verdade.
- O Peso da Solidão e do Desajuste: Através de Quain, o livro explora a profunda angústia do deslocamento. Ele era um estrangeiro em terra indígena, um acadêmico ambicioso frustrado e, como sugere a preferência de sua orientadora por alunos “desajustados”, alguém que talvez não se encaixasse em seu próprio mundo. A reflexão sobre a solidão e o desespero é universal.
- O Legado dos Segredos: O romance é movido por segredos. O que Quain escondeu em suas cartas não enviadas? Por que sua mãe temia que a verdadeira razão do suicídio viesse à tona? A trama demonstra como o que não é dito pode ter um poder duradouro, moldando as vidas daqueles que ficam para trás.
👀 Curiosidades
- Personagem Verídico: Buell Quain foi um antropólogo real, nascido em 1912 e falecido em 1939. Ele foi de fato aluno de Ruth Benedict em Columbia e sua morte no Brasil é um caso documentado, embora enigmático, nos anais da antropologia.
- Sincronicidade Histórica: A morte de Quain ocorreu em 2 de agosto de 1939, exatamente no mesmo dia em que Albert Einstein assinou sua histórica carta ao presidente americano Franklin D. Roosevelt, alertando sobre a viabilidade da bomba atômica. O romance justapõe a tragédia pessoal de um homem ao limiar de uma catástrofe mundial.
- Legado Familiar: Os pais de Buell, Eric e Fannie Quain, eram médicos pioneiros em Dakota do Norte. A clínica fundada por seu pai em 1907 tornou-se um importante centro hospitalar que, até recentemente, ainda carregava o nome da família (Quain and Ramstad Clinic).
🔄 Conhecimentos Conectados
- “O Sol se Põe em São Paulo” (Bernardo Carvalho): Outra obra do autor que compartilha a estrutura de um protagonista investigando um passado enigmático. A mistura de suspense, busca por identidade e reflexão psicológica é uma marca de Carvalho presente em ambos os livros.
- “O Coração das Trevas” (Joseph Conrad): Um clássico da literatura mundial que ecoa em “Nove Noites”. Ambas as obras tratam de uma jornada a um lugar remoto que espelha uma viagem à psique humana, e ambas são estruturadas em torno de um narrador que tenta reconstruir a história de um homem enigmático (Kurtz em Conrad, Quain em Carvalho) que se perdeu nas profundezas de sua própria experiência.
- “Cem Anos de Solidão” (Gabriel García Márquez): Embora de estilo muito diferente, a obra de Márquez compartilha com “Nove Noites” a noção de que o tempo não é linear e que os segredos e tragédias de uma geração podem assombrar as seguintes. A ideia de uma verdade que é ao mesmo tempo mítica e factual permeia os dois romances.