“Olhos d’Água” é uma coletânea de contos que pulsa com a força, a dor e a resiliência da população afro-brasileira, com um foco especial na vivência das mulheres negras. Com uma prosa que mescla a dureza da realidade a uma tessitura intensamente poética , Conceição Evaristo nos apresenta um mosaico de histórias que abordam, sem eufemismos, a pobreza, a violência urbana, o racismo e as complexas relações familiares e afetivas. A obra não se limita à denúncia; ela celebra a vida que insiste em brotar nas frestas, a força ancestral que sustenta os personagens e a capacidade humana de encontrar beleza e afeto em meio ao caos. Ler “Olhos d’Água” é uma experiência transformadora, que nos convida a enxergar o mundo através de pupilas marejadas de lágrimas, mas também de rios caudalosos de força e esperança.
📑 Resumo por Conto
A coletânea é composta por 15 contos, cada um uma janela para um universo particular e, ao mesmo tempo, universal.
- Olhos d’água: O conto que abre e batiza a obra é uma busca poética da narradora pela cor dos olhos de sua mãe. Essa busca a transporta para memórias da infância, marcadas pela fome e pela criatividade materna para driblar a dor. Ao final, a revelação não é sobre uma cor, mas sobre a essência do sofrimento e do amor que transbordavam em lágrimas, como “rios caudalosos sobre a face”.
- Ana Davenga: A história de amor e lealdade entre Ana e Davenga, o chefe de um grupo criminoso. O barraco do casal funciona como quartel-general, e Ana, inicialmente vista com desconfiança, torna-se uma figura respeitada. O conto explora a vida sob o signo da violência e do perigo, culminando em um desfecho trágico que celebra o amor em meio à brutalidade.
- Duzu-Querença: Acompanhamos a trajetória de Duzu, desde a infância explorada em um prostíbulo até a velhice como mendiga. Apegada a delírios para sobreviver à dor da perda de seus netos , ela deposita sua esperança na neta Querença, que simboliza a chance de reescrever a história de seu povo e reinventar a vida.
- Maria: Durante um assalto a ônibus, Maria reconhece um dos ladrões: o pai de seu primeiro filho. Ele não a assalta, e essa exceção a torna alvo da fúria dos outros passageiros, que a acusam de cumplicidade e a lincham violentamente. É um conto brutal sobre preconceito, violência e a ironia trágica do destino.
- Quantos filhos Natalina teve?: Natalina passa por quatro gestações, cada uma representando uma faceta diferente da maternidade imposta, negociada ou rejeitada. Desde a gravidez na adolescência, passando por uma barriga de aluguel para os patrões, até a última, fruto de uma violência, que ela decide acolher como unicamente seu.
- Beijo na face: Salinda vive um casamento opressor, vigiada constantemente pelo marido ciumento. Seu refúgio é um amor secreto e delicado por outra mulher, que floresce nos breves encontros na casa de uma tia cúmplice. A narrativa aborda a busca pela liberdade afetiva em um contexto de medo e controle.
- Luamanda: Uma celebração das múltiplas formas de amar ao longo da vida de uma mulher. Luamanda revisita suas experiências: o primeiro amor adolescente, a paixão por homens, o amor com outra mulher, o relacionamento com um jovem e com um idoso, e até a dor da violência. O conto questiona a natureza do amor, que se revela paciente, avassalador e diverso.
- O cooper de Cida: Cida é a personificação da vida urbana acelerada; sua rotina é uma corrida constante contra o tempo. Em uma manhã, uma pausa inesperada a faz contemplar o mar pela primeira vez e questionar sua existência frenética. Ela decide, enfim, “dar um tempo para ela”, em uma redescoberta do ritmo e do sentido da vida.
- Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos: A inocência infantil colide com a brutalidade da violência na favela. Enquanto a menina Zaíta procura aflita por uma figurinha perdida , um tiroteio irrompe. A narrativa se desenrola sob o som das balas, que acabam por atingir a menina, cujo corpo é encontrado em meio aos seus brinquedos espalhados.
- Di Lixão: Um retrato cru e sombrio dos últimos momentos de um menino de rua apelidado de Di Lixão. Sofrendo com uma infecção e uma agressão, ele se encolhe em posição fetal, lembrando-se da mãe e da dureza de sua curta vida, até ser encontrado morto.
- Lumbiá: O menino Lumbiá, vendedor ambulante, é fascinado por presépios. Em sua pureza, ele tenta “salvar” a imagem do Menino Jesus de uma loja, acreditando que a estátua sente frio e solidão. Em sua fuga, é atropelado, morrendo abraçado à imagem que queria proteger.
- Os amores de Kimbá: Kimbá, um jovem da favela , se envolve em um triângulo amoroso com um casal rico, Gustavo e Beth. A relação, que explora dinâmicas de poder, classe e desejo, se torna insustentável quando os sentimentos se aprofundam, levando os três a um trágico pacto de morte.
- Ei, Ardoca: Ardoca é um homem consumido pela rotina massacrante de trabalhador suburbano, simbolizada pelo trem diário. Farto da vida, ele decide cometer suicídio tomando veneno e embarcando em sua última viagem de trem , onde seu corpo sem vida é roubado por outro passageiro.
- A gente combinamos de não morrer: Contado a partir de múltiplas vozes, o conto gira em torno de um pacto de sobrevivência feito por jovens envolvidos com o tráfico. A narrativa fragmentada reflete a precariedade da vida, onde a palavra, a lealdade e a traição definem o destino. Nele, a escrita surge como um ato de resistência: “uma maneira de sangrar” e de sobreviver.
- Ayoluwa, a alegria do nosso povo: Com um tom de fábula, o conto narra a história de um povoado que perdeu a esperança. A vida secou, os mais velhos desistiram e os jovens se entregaram à violência. O nascimento de uma menina, Ayoluwa (“a alegria do nosso povo”), reacende a vida e a capacidade de lutar e sonhar da comunidade.
🖋️ Principais Pontos
- A “Escrevivência” como Método: Conceição Evaristo cunhou o termo “escrevivência” para definir sua produção, que une as palavras “escrever” e “vivência”. Seus textos nascem das experiências coletivas de mulheres negras, transformando a escrita em um ato político e de resistência. No conto “A gente combinamos de não morrer”, uma personagem afirma que escrever é sua forma de sangrar , mas também de costurar a vida com “fios de ficção”.
- O Protagonismo da Mulher Negra: A obra é uma poderosa galeria de personagens femininas. Mães, filhas, avós, amantes e trabalhadoras têm suas histórias contadas a partir de sua própria perspectiva, rompendo com o silenciamento histórico e apresentando suas dores, desejos e lutas de forma complexa e multifacetada.
- A Denúncia Social sem Sentimentalismo: Evaristo aborda temas como a miséria, o racismo e a violência urbana com uma linguagem direta e, por vezes, brutal. Contos como “Maria” e “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” expõem a banalidade da morte e a crueldade social sem recorrer a idealizações, o que torna a crítica ainda mais contundente.
💡 Aprendizados
- A Resiliência que Brota da Dor: A obra ensina que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, existe uma “vitalidade própria”. A mãe que transforma a fome em brincadeira , a avó que delira para sobreviver à perda e a comunidade que renasce com uma criança mostram que a capacidade de resistir e recriar a vida é uma força poderosa.
- A Complexidade da Maternidade: “Olhos d’Água” desconstrói a visão romantizada da maternidade. A autora explora a maternidade como destino, escolha, fardo, violência e salvação. Natalina, que tem quatro filhos em contextos radicalmente diferentes, é o exemplo máximo dessa abordagem complexa e profundamente humana.
- A Força da Memória e da Ancestralidade: A conexão com o passado e com os que vieram antes é um pilar de sustentação para muitos personagens. A busca da narradora pela memória da mãe no conto “Olhos d’água” é uma jornada de autoconhecimento. A reverência às “ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida” demonstra como o legado ancestral é fonte de força e sabedoria no presente.
👀 Curiosidades
- Apoio Institucional: Esta obra foi publicada com o apoio do “Edital de Apoio à Coedição de Livros de Autores Negros”, uma parceria da Fundação Biblioteca Nacional e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, destacando a importância de políticas públicas para a promoção da diversidade na literatura.
- A Origem do Título: O título do livro é também o do primeiro conto. A expressão “olhos d’água” torna-se a metáfora central da obra, simbolizando as lágrimas de dor, mas também as águas de rios e orixás (como Mamãe Oxum ) que representam a força, a profundidade e o fluxo contínuo da vida.
- Detalhes da Edição: A primeira edição da obra é de 2014 , publicada pela Pallas Editora. A versão analisada é a 3ª reimpressão, de 2016, mostrando o rápido sucesso e a grande procura pelo livro desde seu lançamento.
🔄 Conhecimentos Conectados
Se você se emocionou com “Olhos d’Água”, aqui estão algumas obras que dialogam com seu universo temático e estilístico:
- Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, por Carolina Maria de Jesus: Um clássico indispensável, este diário oferece um relato cru e em primeira pessoa sobre a luta pela sobrevivência em uma favela de São Paulo. Assim como Evaristo, Carolina Maria de Jesus usa a escrita como ferramenta de denúncia e afirmação da própria humanidade.
- Contos do mar sem fim (Antologia): Para quem deseja explorar outras vozes da literatura em língua portuguesa, esta antologia reúne contos de Angola, Guiné-Bissau e Brasil, incluindo a própria Conceição Evaristo. A obra traça um paralelo sobre as experiências, dores e heranças que conectam esses povos.
- O candomblé bem explicado, por Odé Kileuy & Vera de Oxaguiã: A obra de Evaristo é rica em referências à espiritualidade afro-brasileira, como as menções aos Orixás. Este livro é uma excelente porta de entrada para compreender melhor os conceitos, símbolos e rituais que compõem esse universo cultural e religioso.